Estou lendo O Perigo de Estar Lúcida, da Rosa Montero. Ainda quero fazer uma publicação falando apenas sobre esse livro e como ele tem me fisgado. Mas ontem, enquanto lia voltando do trabalho, cheguei numa parte do livro que a autora relata sobre termo inventado pelo escritor francês Romain Rolland (1866-1944) chamado "momento oceânico", que consiste em "instantes de aguda e transcendente intensidade, quando seu eu se apaga e a pele, fronteira do seu ser, se dissipa, de modo que você parece sentir as células do seu corpo se expandirem e se fundirem com as outras partículas do universo". Eu chamo essa sensação de "instante eterno" e achei a explicação ótima para esse sentimento.
Certo dia eu tentei explicar pra uma pessoa o que seria esse instante eterno. Na época eu chamava de "momento pra sempre", mas escrevendo esse texto, achei que "instante eterno" ficaria mais bonito rs. A sensação tinha acabado de acontecer e eu queria dizer o que eu estava sentindo, mas não sei se fui muito claro ao explicar. Porque é algo tão grandioso que não consigo descrever com exatidão. Em resumo, é como se o mundo parasse e você sentisse uma espécie de epifania. É uma sensação de pertencimento ao aqui e ao agora. Você é tudo e tudo é você. Não há separação entre você e o que está ao seu redor. É uma felicidade plena. O mundo pode acabar neste exato momento porque tudo faz sentido e você se sente completo. É apenas um instante, mas cabe uma eternidade ali dentro. Já sentiu algo parecido?
Há alguns anos atrás, contei para a minha psicóloga sobre essa sensação e como eu gostaria de sentir mais isso na vida. Na época, eu passava por um momento muito difícil pós pandemia, em que eu achava que já teria vivido e criado todas as minhas melhores memórias. Eu sentia falta de me apaixonar pelas coisas. Eis que fui pego de surpresa quando aconteceu um instante eterno novamente, e continua acontecendo.
Consigo lembrar exatamente alguns instantes eternos: uma noite acompanhado ouvindo Marina Sena, o show do C Tangana no Sónar 2022, uma noite tomando vinho, um jantar que fiz pra mim mesmo, a vez em que chorei vendo a arquitetura interna da Sagrada Família, uma tarde na praia, uma noite bebendo cerveja com meus pais, etc. Acho que, pra mim, viver é meio que tentar encontrar instantes eternos no meio dessa confusão que é o mundo e a vida. Estar atento e aberto ao acaso, deixar que as coisas aconteçam, e ser surpreendido, é a forma que encontrei de criar novas boas memórias.
No mesmo capítulo do livro que fala sobre pessoas intensas e cita esse termo, Rosa Montero compara esse momento oceânico com o apaixonamento, já que viciados em intensidade tem o coração facilmente inflamável. E afirma que talvez as pessoas intensas tenham mais propensão para que isso aconteça. Já que muitas vezes "não amamos as pessoas, mas a excitação, a maravilhosa euforia provocada pelo fato de acreditarmos estar apaixonados". Será que o apaixonamento é também um instante eterno?
E você? Tem tido instantes eternos?
Pra gente se inspirar
Trago mais um trecho do mesmo capítulo do livro, que é um poema do poeta espanhol Rafael Guillén, chamado "Ser um instante".
A certeza chega como um deslumbramento.
Existe por instantes de luz. Ou de trevas.
O resto são as horas, os panos de fundo,
o cinza para contratar. O resto é o nada.
É um momento. O corpo desabita-se e deixa
de ser a transparência com que vê a si mesmo.
Incorpora-se às coisas; faz-se matéria estranha
e podemos senti-lo de um lugar remoto.
Eu me lembro de um instante em que Paris caía
sobre mim com o peso de uma estrela apagada.
Me lembro daquela chuva total. Paris é triste.
Tudo que é belo é triste enquanto existir o tempo.
Viver é parar com o pé levantado,
é perder um degrau, é ganhar um segundo.
Quando se olha um rio passar, não se vê a água.
Viver é ver a água; deter seu relevo.
Minha errância apoiava-se no parapeito de ferro
da Pont des Arts. De repente, a vida cintilou.
Chovia sobre o Sena, e a água, cravejada,
fez-se pedra, cinza de endurecida lava.
Nada altera sua ordem. É só uma pulsação
do ser que, inesperadamente, se torna perceptível.
E dá pra sentir por dentro a solidez do ferro,
e somos o próprio olhar que nos atravessa.
A lucidez escolhe momentos imprevistos.
Como quando, na sala de projeção, uma falha
interrompe a ação, deixa uma foto fixa.
Logo o ritmo segue. E segue o afundamento.
A pesada silhueta do Louvre não cabia
no espaço. Estava instalada em alguma
parte de mim, era uma fração daquela consciência total
que fendia com seu raio a certeza absoluta
Ser um instante. Ver-se entre outras coisas
que são. Depois não há nada. Depois o universo
prossegue no vazio sua morte giratória
Mas se detém por um momento, vivendo.
Eu me lembro que chovia sobre Paris. As árvores
nas margens também eram eternas. Num segundo,
as águas retomaram seu curso e eu, de novo,
olhava-as sem vê-las, desaparecerem sob a ponte.
Pra gente se conectar
Lembrei desse texto lindo do Emanuel Aragão quando li o poema acima no trecho "Como quando, na sala de projeção, uma falha / interrompe a ação, deixa uma foto fixa." porque o Manu faz uma comparação parecida, mas com uma tela em branco (aqui no caso, falando sobre amor e apaixonamento). Veja e sinta-se afetado também:
Agradecimento especial ao Álefe Gonçalves, que revisou os textos desta publicação com muito carinho.
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